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As Roupas de O Gambito da Rainha e a Importância do Figurino no Meio Audiovisual

  • Foto do escritor: Guilherme Bambace
    Guilherme Bambace
  • 31 de mar. de 2022
  • 18 min de leitura


As roupas fazem parte de quem nós somos. Do mesmo jeito que nos expressamos por meio da comunicação e da arte, também manifestamos nossa identidade por meio das vestimentas que usamos no dia a dia. Cada pessoa tem seu próprio processo, decidindo suas roupas de acordo com mood, praticidade ou algum outro fator de sua escolha, tanto proposital como inconsciente. Se você está se sentindo para baixo, pode optar por vestir cores mais escuras e formatos mais largos, roupas confortáveis e aconchegantes. Se hoje é um grande dia e você está positivo com os acontecimentos de um futuro muito próximo, é mais provável que prefira usar cores vibrantes, que transmitam alegria e bom-humor. Caso você tenha uma entrevista de emprego importante, talvez seja mais sensato vestir roupas mais maduras, que passem um tom de profissionalismo e responsabilidade. Se está sol, roupas leves. Se está chovendo, roupas que irão te cobrir e aquecer. E por aí vai.


Dessa forma, vemos o quanto nossas roupas refletem nossa própria psique, nossos pensamentos e nossas emoções. Nosso guarda-roupa é um elemento essencial no nosso processo identitário, responsável por fortalecer nossa percepção e definição do “eu” enquanto traz pertencimento e ancoragem de alguma forma para cada um. “Sei quem eu sou, e me visto de acordo”. Ao nos apropriarmos de determinado estilo, buscamos nos inserir em um grupo que carrega significado para nós, carregando associação não só para nós mesmos, como também para as outras pessoas que nos cercam. Mas nossa identidade não é fixa, imutável. Na medida em que estamos em constante mudança e evolução, também refletimos essa fluidez por meio de nossas roupas, que com o tempo vão mudando de significado conosco.


Na mídia, as roupas também possuem enorme importância, principalmente quando pensamos no figurino de algum filme ou série. É uma ferramenta muito utilizada para estabelecer tom, estilo e narrativa por meio das vestimentas usadas por seus personagens, com grande variedade pela diversidade de gêneros e épocas que vêm sendo retratadas nas telas. O propósito do figurino não é apenas vestir um personagem, mas criar significado que condiz com o contexto em que ele está inserido, refletindo sua personalidade, seus pensamentos e suas emoções. É tanto uma arte quanto a própria cinematografia em si, apesar de não receber tanta atenção pelo público por seu maior foco em detalhamento.


Quando pensamos em certos filmes, séries ou até personagens em específico, automaticamente lembramos não apenas de sua aparência física ou personalidade, como também das roupas que são intrinsecamente associadas a eles. Podemos primeiramente lembrar do icônico traje que o herói dos quadrinhos Superman (ou Super-Homem, no Brasil) utiliza para combater o crime, mas seu disfarce como Clark Kent também é igualmente memorável, sendo uma parte essencial de seu personagem tanto nos quadrinhos como no cinema e na televisão. Ao falarmos de O Mágico de Oz, é impossível não mencionar os sapatinhos de rubi de Dorothy, assim como seu vestido azul listrado. E quando se trata de figurino contemporâneo, a primeira coisa a ser lembrada no filme As Patricinhas de Beverly Hills (ou Clueless, em seu título original nos EUA), por exemplo, é o traje amarelo listrado da protagonista Cher Horowitz, que vem sendo recriado na mídia desde os anos 90 até hoje, como podemos ver no clipe da música Fancy, da rapper Iggy Azalea, lançado em 2014, e em inúmeras fantasias para eventos como o Halloween americano.



Apesar de ser um método extremamente eficaz de trazer mais detalhe e significado à uma obra audiovisual, como já abordamos, a arte do figurino é muitas vezes obscurecida por elementos mais chamativos de um filme ou série, como a performance dos atores e atrizes, a qualidade dos efeitos de computação gráfica, a trilha sonora, e por aí vai. Além disso, dentro desse próprio setor certos gêneros geralmente acabam recebendo maior atenção não só das críticas e do público, mas também das mais renomadas premiações da indústria: apesar de ser uma categoria presente nos Oscars desde 1949, a grande maioria dos vencedores de Melhor Figurino pertence ao gênero do drama histórico (filmes de época), fantasia, ou musical. Em suas noventa e duas edições, só existem três filmes com ambiente contemporâneo que levaram a estatueta de melhor figurino, sendo estes “Viagens com Minha Tia” (1979, aventura/comédia), “O Show Deve Continuar” (1979, drama/musical) e “Priscilla: A Rainha do Deserto” (1994, comédia/musical). Vale lembrar que, mesmo sendo contemporâneos, dois destes três filmes também se enquadram na categoria de musicais.


Para o meio da televisão em específico, o figurino recebe ainda menos atenção do que no cinema, não estando presente nas maiores premiações como os Oscars e os Golden Globes. No entanto, com a crescente preocupação da indústria em criar séries cada vez mais icônicas, memoráveis e influentes, o orçamento e atenção ao detalhe vem subindo cada vez mais, influenciando diversos setores além do figurino. Outra tendência relativamente recente é o surgimento de “fashion analysis youtubers”, que não falam apenas sobre roupas em seus canais, focando principalmente em sua importância cultural e impacto social, e como isso é retratado em diversos filmes e séries. Alguns exemplos dos maiores canais sobre o assunto na plataforma são ModernGurlz (com 304 mil inscritos) e Mina Le (com 292 mil inscritos). Enquanto canais como estes adquirem um maior número de visualizações e seguidores, o figurino ganha mais atenção do público, e é percebido como uma força muito mais importante do que era nos últimos anos, carregando tanto significado na mídia quanto a própria moda.


Neste ensaio, iremos abordar a importância do figurino através do exemplo da minisérie de drama “O Gambito da Rainha”, que estreou na plataforma de streaming Netflix em outubro de 2020 sob enorme aclamação tanto por parte das críticas quanto pelo público, sendo a série mais assistida de todo o ano. Foi dirigida por Scott Frank, com figurino composto por Gabrielle Binder. Baseada no livro de mesmo nome do autor Walter Tevis, publicado pela primeira vez em 1983, a série conta a história de Beth Harmon, uma jovem talentosa que tem a ambição de ser a melhor jogadora de xadrez do mundo enquanto lida com questões como família, identidade, vício e saúde mental. Ambientada entre o período das décadas de 50 e 60, a narrativa acompanha a vida de Beth ao longo dos anos, desde sua infância em um orfanato até sua adolescência e idade adulta. Apesar de ser uma série com um diverso elenco de personagens, cada um com personalidades e estilos únicos, neste ensaio iremos focar principalmente no figurino de Beth em específico, assim como sua evolução ao longo da série. Dessa forma, também será necessário discutir sobre os acontecimentos da narrativa que intrinsecamente influenciam a personagem e sua perspectiva de mundo, ou seja, spoilers estarão presentes.



O primeiro episódio da série foca principalmente na infância de Beth, quando ela é mandada para um orfanato em 1956 após um acidente de carro que tira a vida de sua mãe aos oito anos de idade. Lá, Beth passa por sua primeira transformação visual, tendo sua identidade basicamente apagada para se integrar ao ambiente da instituição. Ela recebe roupas novas e simples que são usadas por todas as outras garotas que moram no orfanato, e seu cabelo é cortado de forma extremamente curta e prática. A roupa que ela usava ao ser levada para o orfanato - um vestido simples com seu nome bordado por sua mãe - é queimada, reforçando o processo do abandono de uma antiga vida. Beth também é introduzida a uma pequena pílula de cor verde e branca, um medicamento utilizado para entorpecer as meninas do orfanato. Todo o ambiente do cenário segue a mesma paleta de cores neutras como cinza, marrom e verde escuro - assim como a cor da própria pílula mencionada anteriormente -, o que também é utilizado no figurino das personagens. Essa é uma escolha muito comum em filmes e séries quando o diretor tem o intuito de retratar algo sem graça, homogêneo e sério, mostrando como este é um ambiente em que as garotas não possuem suas próprias identidades e formas de representação.


Nestas imagens, podemos ver a semelhança do figurino entre as diversas garotas do orfanato, que também utilizam variações do mesmo corte de cabelo.

Depois de pouco tempo no orfanato, Beth conhece o Sr. Shaibel, um zelador que joga xadrez sozinho no porão. Com muita insistência, ela acaba o convencendo a ensiná-la sobre o jogo, e os dois estabelecem uma relação de mentor e aprendiz que logo se torna amigável e até paternal. Sem ter mais nada para motivá-la na rotina repetitiva do orfanato, Beth então toma a iniciativa de praticar xadrez cada vez mais e descobre que possui um talento único no jogo, chegando até a chamar a atenção de jogadores mais experientes que a incentivam a continuar. No orfanato, Beth também se aproxima de Jolene (1ª imagem acima), uma jovem negra que já mora há tempo no orfanato.


Anos depois, agora em 1963, Beth continua no orfanato e ainda usa o mesmo corte de cabelo e estilo de roupa que foram mostrados no primeiro episódio. Isso indica que, apesar da passagem do tempo, tanto a personagem como o orfanato continuam os mesmos, sem nenhuma grande mudança aparente. Beth é chamada para conversar com Alma e Allston Wheatley, um casal interessado em adotá-la, mas antes que ela possa encontrá-los um funcionário do orfanato diz para que ela coloque uma tiara. Isso aponta a preocupação do orfanato em manter uma imagem jovial e feminina para aumentar as chances de adoção de suas garotas, um ponto que é confirmado pela própria série quando a diretora do instituto mente para os Wheatley ao dizer que Beth é dois anos mais nova do que realmente é.


Aqui vemos Beth em sua nova casa, ainda vestindo as roupas do orfanato, incluindo a tiara mencionada anteriormente.

Ao se mudar para a residência dos Wheatley nos subúrbios de Lexington, em Kentucky, Beth começa a frequentar a escola e rapidamente se depara com o julgamento de suas colegas, que usam roupas consideradas muito mais “na moda” do que nossa protagonista. É nesse ambiente que Beth percebe o quanto seu corte de cabelo, roupas simples e sapatos baratos a destacam das outras alunas, reforçando sua posição de “peixe fora d’água”; enquanto no orfanato todas as garotas usavam as mesmas roupas, a escola apresenta uma possibilidade de se representar por meio de suas roupas.


Apesar de já estarmos no começo dos anos 60, é importante mencionar como a moda não é algo que muda completamente de acordo com a década, tendo uma evolução e mudança gradual de acordo com o tempo. Não só isso, mas também devemos ter em mente que a adolescência de Beth se passa em Kentucky, ou seja, um lugar que não é referência no mundo da moda como cidades como Nova Iorque, Paris e Londres, algo que iremos abordar futuramente neste ensaio. Desta forma, mesmo sendo o ano 1963, vemos como as vestimentas utilizadas pelos personagens em O Gambito da Rainha carregam iconografia principalmente associada aos anos 50, como suéteres, cardigans de malha, saias rodadas e sapatos oxford de sela. Esse era um estilo popular da época denominado Linha College, por ter mais popularidade com jovens colegiais. A paleta de cores utilizada no figurino consiste em tons pastéis como verde, amarelo e rosa combinados com outras cores claras, como branco e creme.


Nessas fotos, podemos fazer uma comparação entre as roupas da época e como ela foi representada na série, indicando a atenção ao detalhe por parte da figurinista Gabrielle Binder. Enquanto suas colegas estão na moda (como na 2ª foto, por exemplo), Beth se destaca com seus sapatos mais usados e antigos (3ª foto)

Percebendo que sua filha adotiva precisa de novas roupas para usar na escola, Alma leva Beth para a Ben Snyder’s, uma franquia de lojas de departamentos que realmente existia na vida real em Kentucky e Louisville. Beth se interessa por alguns vestidos da loja, mas não pode comprá-los, tendo apenas que escolher itens presentes na seção de liquidações da loja, dinheiro e poupança sendo uma preocupação constante de Alma ao longo da série. Beth compra roupas novas, mas que ainda se aproximam muito daquelas que usava no orfanato, com a mesma paleta de cores, rigidez e caimento mais largo. Dessa forma, vemos como mesmo longe do orfanato, Beth ainda encontra dificuldade em se expressar por meio de suas roupas, sendo restringida por fatores como falta de independência e dinheiro.


Já em sua adolescência, Beth ainda continua sem se expressar visualmente com um estilo próprio, tendo que se contentar com as escolhas e limitações impostas por Alma.

Beth continua a praticar e, na medida que vai entrando em cada vez mais competições de xadrez, ela ganha mais prêmios em dinheiro e passa a ter maior liberdade para gastar com o que quiser, como roupas. Um detalhe extremamente interessante é que a personagem passa a usar as roupas que, mais cedo no episódio, tinha apreciado na loja com sua mãe adotiva, assim como sapatos de sela iguais aos de suas colegas. Isso remete ao começo da evolução do estilo de Beth, que começa a seguir as tendências e explorar com suas roupas, a moda se tornando uma válvula de escape em relação aos seus anos no orfanato, onde não tinha a possibilidade de se expressar. Neste período, Beth também descobre que Alma toma as mesmas pílulas verdes que a garota tomava no orfanato, e assim ela ocasionalmente passa a tomar algumas pílulas em segredo com o objetivo de jogar xadrez com mais calma e clareza.


Como podemos ver, Beth compra as roupas pelas quais se interessou na loja Ben Snyder’s, assim como os sapatos de sela tão usados pelas jovens no final dos anos 50 e começo dos anos 60. Assim, notamos tanto o detalhamento da figurinista quanto a influência da moda sobre a personagem.

Com o passar do tempo Beth vai ganhando uma reputação no mundo do xadrez, sendo mencionada em artigos e até chegando a realizar entrevistas para revistas especializadas no jogo. Ela vai se tornando mais popular na escola e gradualmente passa a ter mais confiança em si mesma. De qualquer forma, Beth também adquire descontentamento por receber tamanha atenção por razões que ela considera sem importância, como seu gênero. Ela percebe que, mesmo quando admitem seu dom e habilidade no xadrez, as pessoas continuam destacando o fato de que Beth é uma mulher, surpresos com sua habilidade no jogo principalmente por esse motivo.


A partir da metade do terceiro episódio da série Beth já está no começo de sua vida adulta, época em que começa a entrar em campeonatos mais desafiadores aos 18 anos de idade, em 1966. O figurino reflete o crescimento da personagem em comparação com seu estilo no colégio, com ela usando roupas mais elegantes e femininas. Um ponto a ser mencionado é que, apesar dos estilos Mod e Beatnik terem sido predominantes nessa época, com roupas com aparência mais andrógina e moderna, podemos ver que Beth ainda utiliza roupas mais associadas às donas de casa do começo dos anos 50, com foco em saias rodadas, saltos, maquiagem e cores claras. Essa é uma escolha por parte de Gabrielle Binder para reforçar a feminilidade da protagonista: na mídia, muitas personagens femininas que estão inseridas em ambientes predominantemente masculinos (como esportes, informática/tecnologia e até o xadrez) possuem figurinos que seguem este estilo, evitando uma representação visual feminina para passar a impressão de que elas estão tentando se enquadrar. Em O Gambito da Rainha, por outro lado, o figurino com estética mais feminina é, desta forma, utilizado como ferramenta para estabelecer um oposto visual de Beth contra seus oponentes, reforçando também que a feminilidade de Beth faz parte de sua identidade.


No filme Miss Simpatia (2000, 1ª e 2ª imagens), por exemplo, vemos como a protagonista Grace usa sempre roupas largas e cores escuras para não chamar atenção, como se ela escondesse sua feminilidade para evitar o machismo de seus colegas homens no ambiente extremamente masculino da força policial. Já em O Gambito da Rainha (3ª, 4ª e 5ª imagens), a protagonista Beth é vista em roupas mais femininas, usando vestidos, maquiagem, saltos e cores claras que a destacam da multidão predominantemente masculina do xadrez.

No final do quarto episódio, a mãe de Beth falece sob suspeita de hepatite, condição exacerbada por seu alcoolismo. Assim, nossa protagonista precisa lidar com seu luto e é arremessada para a vida adulta sozinha, não tendo mais nenhuma figura paterna ou materna presente em sua vida; seu pai adotivo havia abandonado Beth e Alma há anos, se mudando para outra cidade. O figurino de Beth passa por mais uma transformação, adotando um estilo mais de acordo com a metade da década de 60, com maior influência do movimento Beatnik, marcado por roupas sóbrias, simples e práticas como calças cigarrete, blusas de botão e suéteres. O luto da personagem faz com que ela comece a se apoiar cada vez mais no uso da pílula verde que tomava ao longo de sua infância e adolescência, combinando este vício antigo com um novo hábito alcoólatra.


Aqui podemos ver claramente a relação entre os estilos de Beth em O Gambito da Rainha e um dos maiores representantes da moda Beatnik da época, a atriz e dançarina Audrey Hepburn.

Um detalhe importante a ser mencionado é que a primeira vez que a personagem é vista vestindo calças é logo após a morte de sua mãe. Essa é uma ferramenta extremamente utilizada no figurino de filmes e séries para demonstrar o crescimento de uma personagem feminina, representando sua entrada à vida adulta. É um símbolo que conscientemente associamos à independência e maturidade, algo que Beth adquire ao perder sua mãe e passar a cuidar de si mesma. Essa iconografia também se alinha bastante ao contexto histórico da série, com os anos 60 sendo um marco para a emancipação feminina e o surgimento do feminismo que influenciou não só a mentalidade das mulheres da época como também da moda. Mulheres já vestiam calças e outros itens inspirados na moda masculina décadas antes, mas apenas nos anos 60 que esse fator se tornou uma tendência mundial a ser representada na mídia da época.


Aqui, podemos ver o contraste visual entre o estilo da dona de casa americana dos anos 50 - referência predominante no guarda-roupa de Beth antes do falecimento de sua mãe - e o estilo Beatnik mais prático e simplista da nova moda feminista dos anos 60. Jean Seberg, atriz e ativista retratada à direita, foi até mencionada como um dos ícones da moda que inspiraram o figurino composto por Gabrielle Binder para O Gambito da Rainha.

Depois de algum tempo, Beth se muda temporariamente para Nova Iorque para se preparar para o torneio internacional de xadrez, uma competição contra oponentes de todo o mundo que são muito mais velhos e experientes que ela. Seu figurino continua sendo baseado na praticidade e conforto, indicando que Beth não só amadureceu como também está totalmente focada em seu treino. A mudança das roupas de Beth em Nova Iorque também reflete o contraste entre a moda das pequenas cidades (como Lexington, cidade em que Beth passou sua adolescência) e as grandes metrópoles, mostrando como Beth se adapta ao novo estilo de sua geração.


Além do estilo mais casual que Beth passa a adotar nessa fase do seriado, também podemos ver que ela também começa a adotar outras tendências da época, como lenços na cabeça.

Em 1967, a competição finalmente se dá início em Paris e Beth aproveita o tempo livre entre partidas para explorar a cidade, praticar suas estratégias de jogo e fazer compras. Como tanto Nova Iorque quanto Paris são cidades incrivelmente influentes no meio da moda e Beth já é um personagem que demonstra interesse nessa área ao longo da série, podemos perceber mais uma transformação visual em seu figurino, com a personagem adotando roupas que combinam tanto sua maturidade como sua elegância e feminilidade.



Na noite antes de uma partida final contra seu maior adversário, o campeão mundial russo Vasily Borgov, Beth se descuida e exagera no consumo de álcool para relaxar seus nervos. Ela acorda não só com uma extrema ressaca e dor de cabeça como também atrasada para a partida, se apressando para se arrumar e alcançar o saguão do hotel. Confusa, estressada e despreparada, Beth perde contra Borgov e se humilha, esta sendo sua pior partida até o momento. Visualmente, podemos ver que a roupa que Beth veste em seu pior dia reflete a paleta de cores do item que tanto a impactou negativamente ao longo de sua vida, a pílula verde que tomava no orfanato. Dessa forma, o figurino estabelece um detalhe sutil que representa a força que os vícios de Beth possuem sobre ela e sua vida, assim como os sacrifícios que eles trazem como consequência.


O vestido verde claro com detalhes escuros remete à paleta de cores das pílulas de que Beth tanto depende para se concentrar, sendo uma forma visual e dinâmica de demonstrar a influência que elas têm na vida de Beth, não sendo uma bênção mas sim um obstáculo.

Depois de sua derrota vergonhosa, Beth volta para seu lar em Kentucky e lentamente passa a depender cada vez mais de seus medicamentos e álcool. Sua derrota contra Borgov, a morte de sua mãe, e a tentativa de seu pai ausente de retomar sua própria casa se acumulam e Beth desconta suas frustrações em seus vícios. Ela passa dias seguidos trancada em casa em uma danosa maratona de bebidas, pílulas e cigarros, não possuindo nenhum tipo de sistema de apoio como família ou amigos próximos. A representação visual de seu estado mental é claro, com a personagem adotando um estilo desleixado e rebelde, fumando e bebendo por sua casa em sua roupa de baixo.


A 1ª imagem é a única instância em que Beth usa qualquer tipo de maquiagem diferenciada, que foge do natural, ao longo da série inteira. O estilo adotado reforça seus olhos, com traços fortes que remetem ao cansaço e rebeldia, como se ela tivesse o desejo de chamar a atenção e causar estranheza. Na 2ª, podemos ver Beth fumando e bebendo em sua casa, despreocupada em se vestir para o dia.

Com a ajuda de sua amiga de infância Jolene, que aparece na porta de sua casa como um tipo de anjo da guarda, Beth admite seus vícios e dá início à uma trilha de recuperação para se preparar para o campeonato decisivo que irá determinar se Beth é ou não é a melhor jogadora de xadrez da atualidade. Em 1968, Beth viaja para Moscou, cidade onde o campeonato irá acontecer, e fica mais uma vez frente a frente com seus maiores adversários, incluindo Vasily Borgov. Ao recuperar sua confiança em si mesma, Beth também volta a adotar seu estilo clássico, com roupas femininas e elegantes. Como uma possível forma de retratar sua seriedade e foco na competição, a paleta de cores adotada pelo figurino de Beth é sóbria, focando em tons mais escuros como o preto. O uso de uma paleta de cores mais neutra no figurino de Beth também pode ser uma forma de retratar a vontade da protagonista de ser mais discreta, não chamando tanta atenção para si mesma considerando a relação tensa entre os EUA e a União Soviética pela Guerra Fria. Beth precisa ser acompanhada por seguranças americanos durante a sua viagem e recebe rígidos protocolos para navegar por Moscou de forma segura, evitando sair de seu hotel e até atender o telefone.


Aqui, podemos ver como o uso de cores escuras como o preto estabelecem não só maturidade e elegância, como também permitem um visual mais discreto, ilustrando a seriedade da competição e da tensão entre os EUA e a União Soviética pela Guerra Fria.

Beth consegue derrotar seus oponentes e chegar até a etapa final, enfrentando novamente Borgov, mas agora pelo título de campeão mundial de xadrez. A personagem usa um vestido aparentemente simples, mas que para ela carrega muito significado, não pelo item em si mas pelo que ele representa. Segundo Gabrielle Binder, a utilização do tom verde pálido no figurino da personagem simboliza um tipo de volta ao lar, sendo a cor do vestido que Beth usava como criança quando ela perdeu sua mãe. Apesar de não ter o nome de Beth bordado em sua roupa, como o vestido da sua infância, Beth ainda consegue sentir que está finalmente próxima da sua mãe, adquirindo a confiança que precisa para superar Borgov. Quando antes mostrava a fragilidade de Beth após perder sua mãe e ir para o orfanato, agora a cor mostra sua força ao vencer o título de campeã, ressignificando o que ela representa para a personagem.



Após vencer a competição em Moscou e tomar o título de campeã mundial de xadrez, vemos Beth em sua última peça de figurino no caminho para o aeroporto. Em contraste com o restante do figurino adotado pela protagonista durante sua viagem para Moscou, essa roupa consiste em uma junção de peças brancas, incluindo um casaco, uma calça, sapatos, luvas e até um gorro, todos na mesma cor. Pela primeira vez em toda sua viagem para Moscou, Beth decide sair sozinha pela cidade, ilustrando sua confiança como campeã. Ao invés de usar preto em uma tentativa de não se destacar da multidão, Beth caminha orgulhosa em roupas bem mais chamativas.





Em sua maior derrota, Beth utilizava roupas que representavam as pílulas verdes que tiveram tanta influência sobre ela ao longo de sua vida. Agora, ao conquistar o título de campeã mundial, ela usa roupas que representam uma das próprias peças do jogo em que venceu: uma rainha branca. Seu gorro chega até a remeter à parte superior da peça da rainha, como se Beth também tivesse sua própria coroa. Assim, ela se torna não só uma campeã do xadrez, mas sim a rainha. O mundo é o seu tabuleiro, e agora chegou sua hora de reinar.


Aqui, podemos ver a semelhança entre a parte superior da peça da rainha e o gorro usado por Beth, ambos com um ponto no topo.

Além dos elementos associados à narrativa, também existem outros detalhes no figurino de O Gambito da Rainha que são interessantes de serem discutidos. O primeiro é a utilização de padrões geométricos, presentes em uma enorme quantidade e variedade no figurino da protagonista. Ao longo dos 7 episódios da série, podemos ver Beth em roupas com padrões geométricos cerca de 20 vezes, um número extremamente alto. A utilização desses padrões na vestimenta da Beth é um indicador de que, por meio do xadrez, ela se sente segura e confiante. Esse detalhe é até confirmado por uma citação de Beth, que ao ser entrevistada pela primeira vez para uma entrevista de xadrez afirma que o tabuleiro é que chamou sua atenção quando ela era pequena. Um mundo inteiro em 64 quadrados onde ela pode controlar e dominar. Assim, é esperado que ela tente passar a confiança que sente ao jogar para seu dia a dia, estabelecendo referências ao xadrez até quando não está jogando. Abaixo, podemos ver apenas alguns dos exemplos em que Gabrielle Binder fez uso de padrões geométricos para a construção do figurino de Beth.



Outro detalhe interessante é que Beth, ao contrário de vários personagens em outras obras audiovisuais, é vista diversas vezes com um item de roupa repetido. Muitas vezes esse detalhe nem é uma opção para figurinistas de filmes e séries, considerando orçamento e praticidade. Quando um cronograma de filmagem e produção é extremamente corrido ou se uma cena a ser filmada é curta, por exemplo, é muito mais fácil apenas reutilizar itens do departamento de figurinos para vestir o elenco. Considerando a enorme variedade de roupas que Beth utiliza ao longo dos poucos episódios da série, mesmo com algumas peças sendo repetidas, podemos assumir que o orçamento foi grande o bastante para não gerar preocupações ao departamento de figurino. Assim, essa provavelmente foi uma escolha feita pela figurinista Gabrielle Binder. A reutilização de vestimentas é uma ótima forma de trazer realismo à alguma obra audiovisual, como se o personagem realmente tivesse esses itens em seu guarda-roupa. Se uma pessoa normal reutiliza suas roupas ao longo da sua vida, por que um personagem que age como representação de uma pessoa não faria o mesmo? Abaixo podemos ver exemplos de cenas em que Beth reutiliza suas roupas.



Assim, quando analisamos não só os elementos mais característicos como também os detalhes do figurino de alguma obra audiovisual, podemos ver como o esforço de um departamento que muitas vezes é desconsiderado traz maior riqueza e significado à uma história e os personagens que ela representa, criando pequenas histórias contidas em simples itens de roupa. Quando utilizado estrategicamente, o figurino age como elemento essencial na construção do processo identitário de personagens de uma obra audiovisual, sejam eles príncipes e princesas de um reino medieval, estudantes do ensino médio ou prodígios de xadrez dos anos 60.


Para um olhar mais detalhado no figurino de O Gambito da Rainha, também é possível visitar a exposição virtual “The Queen and The Crown” do Brooklyn Museum, que apresenta uma variedade de vestimentas usadas na série e na quarta temporada de The Crown, assim como informações gerais e comentários das próprias figurinistas.


The Queen and The Crown | Brooklyn Museum: https://www.thequeenandthecrown.com/





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